Nota Técnica Ipea – 2017 – março – Número 21 – Diest
Perfil das Comunidades Terapêutica Brasileiras
Na segunda metade do século passado iniciava-se um movimento revolucionário no cenário mundial da saúde mental: a Reforma Psiquiátrica. Mais tarde, na década de 80, chegaria ao Brasil sob a égide do Movimento de Luta Antimanicomial, cuja data comemorativa aconteceu recentemente, no dia 18 de maio, data que se remete ao I Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, ocorrido em 1987, na cidade de Bauru, SP, que reuniu mais de 350 trabalhadores na área de saúde mental, que elaboraram o primeiro pronunciamento sobre a Reforma Psiquiátrica para o Brasil: o Manifesto de Bauru.
No mesmo cenário mundial, e também através dos mesmos atores (Maxwell Jones, entre outros), e com as mesmas bases conceituais e metodológicas, nascia a proposta das Comunidades Terapêuticas (CTs), inicialmente psiquiátricas, que mais tarde se tornariam um modelo consagrado de atendimento para a dependência química, no Brasil e no mundo.
Por outro lado, com o alarmante crescimento deste problema no Brasil depois da década de 80, assim como pela ausência de políticas públicas que dessem conta do problema, houve uma indiscriminada proliferação de locais de internação/acolhimento para dependentes químicos que, mesmo se autodenominando como CT, em nada se assemelhavam ao modelo inicial proposto, baseado no respeito à dignidade humana, no modelo psicossocial – que garante a participação ativa no projeto terapêutico e no ambiente da CT –, e com foco absoluto na reinserção social dos acolhidos, que em todos os casos devem aderir voluntariamente ao acolhimento, podendo desligar-se do programa a qualquer momento, sem constrangimentos nem impedimentos.
Estes locais, que definitivamente não deveriam ser chamados de CTs, apresentam até hoje práticas desumanas e iatrogênicas, muito semelhantes às criticadas pelo movimento da Reforma Psiquiátrica e pelo Movimento de Luta Antimanicomial, o que tem provocado o descrédito de várias instituições, movimentos, conselhos e autarquias, para com o modelo das verdadeiras CTs, que tem sido alvo de ataques, denúncias e difamações de forma infundada e tendenciosa.
Em 16 de outubro de 1990, a FEBRACT iniciou suas atividades,quando a grande maioria das CTs ainda atuava sem qualquer respaldo técnico e, muitas vezes, sem um comportamento ético definido. Em 1995, considerando a disseminação desordenada destas entidades, a fim de regulamentar este movimento que crescia a cada dia, a Federação solicitou ao Conselho Federal de Entorpecentes, que estabelecesse normas mínimas de funcionamento ao lado da competente fiscalização.
Com a nossa colaboração, a proposta das CTs no Brasil foi discutida pelo Ministério da Saúde em sua “Política para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas”, e regulamentada inicialmente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em sua RDC 101/2001, dando forma e conteúdo oficial a um movimento de repercussão mundial que oferecia um modelo diferenciado de tratamento para o flagelo do momento.
Mais tarde, esta foi substituída pela RDC 29/2011. Em 2015 foi elaborada e publicada a Resolução do CONAD (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) 01/2015, denominada de Marco Regulatório das Comunidades Terapêuticas, que regulamentava o funcionamento, os propósitos e as diretrizes das Comunidades Terapêuticas do Brasil, porém esta foi suspendida pelo Ministério Público no ano seguinte, ficando as CTs novamente sem uma regulamentação específica, a despeito das inúmeras tentativas realizadas pelos movimentos organizados de CTs do Brasil para criar uma legislação que legitime e delineie este serviço.
Diversos estudos tendenciosos e mal desenhados foram feitos ao longo da última década sobre as CTs do Brasil, denunciando uma infinidade de práticas desumanas, irregularidades e abusos em grande parte das instituições, sendo que muitas destas práticas descaracterizam absolutamente o serviço das Comunidades Terapêuticas, como a internação involuntária, grades e celas fortes, por exemplo.
Depois de tudo isto, finalmente foi realizado uma verdadeira pesquisa científica sobre o perfil das CTs do Brasil, a pedido da SENAD (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas), desenvolvido pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), juntamente com pesquisadores de diversas universidades (Unicamp, UFRN, UFRGS, UFSCAR).
Este estudo, chamado de “Nota Técnica: Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras” (IPEA, 2016), foi realizado de forma neutra e com amostra estatisticamente representativa, como deve ser uma pesquisa científica de fato, o que garante que os dados coletados e, consequentemente, os resultados obtidos, representem de fato a realidade das CTs no Brasil.
A partir desta pesquisa qualitativa que se empreendeu, foi possível observar o processo de padronização e profissionalização do funcionamento das CTs.
Mesmo que se tenha identificado alguns serviços demonstrando precária adequação à regulamentação existente, pode-se constatar que outras Comunidades Terapêuticas se apresentam atentas ao debate acerca delas, e às normativas que vêm sendo estabelecidas, em geral, possuem sede física, estrutura burocrática e equipe multiprofissional, resultados estes que a FEBRACT reconhece como representativos do modelo de CT que promulga e identifica entre as suas filiadas.
Dentro os principais resultados obtidos por esta pesquisa, podem ser ressaltados os seguintes:
1. Prevalência de CTs, vinculadas às organizações religiosas.
Porém, “diferentemente do que é mais comumente difundido, não se trata primordialmente de uma busca pela conversão religiosa” (p. 35), ou seja, as CTs utilizam a religiosidade como instrumento que contribui com a modificação dos comportamentos destrutivos e autodestrutivos e, consequentemente com a prevenção da recaída, e não como mecanismo doutrinador.
2. Média de 3 a 6 vagas por dormitório.
Outra inverdade amplamente divulgada é que as instalações das CTs se encontram fora dos padrões exigidos pela ANVISA, enquanto que este resultado evidencia que a maioria das CTs se encontram devidamente adequadas à legislação vigente, como a RDC 29/2011.
3. Medicalização das CTs.
Segundo esta pesquisa, as CTstêm incorporado sistematicamente profissionais e procedimentos da áreasaúde em sua rotina de funcionamento.
4. Equipes Multiprofissionais.
“Progressivo aumento de profissionais contratados e remunerados, com formação técnica” (p. 35).
Dentre os profissionais mais presentes nas CTs se destacam: Psicólogo, Assistente Social, Terapeuta Ocupacional, Enfermeiro e Médico.Enfatiza-se, neste campo, “uma discrepância entre as percepções sobre o modelo das comunidades terapêuticas, veiculadas pelas lideranças corporativas dos(as) psicólogos(as) e assistentes sociais, de um lado;e o engajamento efetivo dos profissionais destas corporações, nestas instituições, de outro. Pois, enquanto as lideranças corporativas de ambas as profissões – representadas pelos Conselhos Federais de Psicologia e de Serviço Social –, têm se mostrado resistentes ao financiamento federal às CTs, os profissionais de suas bases têm encontrado nelas amplo espaço de atuação por meio de postos de trabalho remunerado.”
5. Capacitação das equipes.
A pesquisa mostra que além de ter evidenciado a presença de profissionais nas equipes das CTs, estes profissionais estavam devidamente capacitados, principalmente por cursos oferecidos pela SENAD e pela UNIAD.
6. Participação em Conselhos de Políticas Públicas.
Os dados apontam que as CTs têm se engajado cada vez mais nas Políticas Públicas municipais, estaduais e federais, atingindo cada vez maior representatividade no cenário político nacional, como mostra o Gráfico 1.
GRÁFICO 1 – PARTICIPAÇÃO DAS CTS EM CONSELHOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS – BRASIL (EM %)
7. Padronização de procedimentos, regras e rotinas internas.
A maioria das CTs têm se organizado de forma específica, visando caracterizar o modelo de trabalho dentro de diretrizes claras, que definem o que é, de fato, uma CT, no que diz respeito às suas rotinas e procedimentos.
8. Interface com a rede
As CTs têm buscado se vincular à RAPS como equipamento de interesse à saúde, legitimando assim seu papel dentro da rede de serviços, como mostra o Gráfico 2.
GRÁFICO 2 – RECURSOS EXTERNOS ACESSADOS PELAS CTS
9. Filiação a entidades associativas.
“As CTs estão organizadas, ou em processo de organização institucional, em torno dos seus interesses, o que lhes confere condições de coordenação de ações, com vistas a defesa de pautas comuns” (p. 33).
A principal entidade associativa representativa das CTs no Brasil, segundo esta pesquisa, foi a FEBRACT, como mostra o Gráfico 3.
GRÁFICO 3 – PRINCIPAIS ENTIDADES ASSOCIATIVAS DE CTS NO BRASIL
10. Produção de dados internos.
As CTs no Brasil têm produzido maiores quantidades de dados internos, no que diz respeito tanto às atividades terapêuticas desenvolvidas, quanto também à vida financeira, permitindo assim a prestação de contas e a consequente justificativa pública do trabalho realizado.
Considerando estes dados, fica evidenciado que o perfil das CTs no Brasil é diametralmente oposto ao divulgado recorrentemente pela mídia sensacionalista, assim como pelo combatido pelas diferentes organizações de classe que defendem, assim como a FEBRACT, o modelo antimanicomial de tratamento para a dependência química.
Por isto se faz imprescindível que cada vez mais as CTs no Brasil sejam reconhecidas como um serviço importante, caracterizado pela internação voluntária dos casos que preencham os devidos critérios de elegibilidade, a fim de que políticas públicas que legitimem e regulamentem seu funcionamento possam ser estabelecidas, para que se tornem cada vez mais serviços de excelência técnica, sem por isto ficarem desprovidas do característico carisma humanista que motivou sua fundação e funcionamento.
Quem teve a oportunidade de aproximar-se de uma Comunidade Terapêutica, tem a sensação de haver participado de “algo diferente”.
Quem teve, além disso, a oportunidade de conviver durante algum tempo numa Comunidade Terapêutica terá uma lembrança que o acompanhará pelo restante dos seus dias.
MARIA HELENA GOTI, 1990
PDF Completo: Nota_Técnica_IPEA (Clique Aqui)
Campinas, 19 de maio de 2017
FEBRACT – FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE COMUNIDADES TERAPÊUTICAS