É com profunda indignação e um sentimento de injustiça que recebemos mais um relatório de “inspeção nacional”. Este documento não é uma análise; é uma sentença para as Comunidades Terapêuticas (CTs).
Mais uma vez o ataque constante e indiscriminado generaliza as falhas de instituições clandestinas para deslegitimar todo um sistema de atenção a pessoas e famílias que sofrem com o uso nocivo de drogas.
Diante do caos social e da ausência de vagas no setor público, novamente a única “solução” proposta é o fechamento, sem que se apresente uma alternativa viável e humana para acolher as vidas que seriam descartadas.
Esta contestação é a defesa, não de um modelo utópico, mas sim de um serviço real e profissionalizado que tem demonstrado, com evidências científicas e alto índice de aprovação dos próprios usuários e seus familiares, ser capaz de oferecer uma oportunidade e, acolhimento com respeito e dignidade. Não permitiremos que o preconceito ideológico anule a esperança.
Por este motivo, esta contestação ao “Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas – 2025” (RINCTS_25) está pautada na clareza conceitual e metodológica, conforme o rigor exigido pelo debate sobre políticas públicas de saúde mental e drogas no Brasil.
Introdução: o paradigma da Comunidade Terapêutica e a Reforma Psiquiátrica
O RINCTS_25, produzido pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), apresenta achados que denunciam graves violações de direitos humanos e a persistência de uma lógica manicomial em estabelecimentos que se autodenominam Comunidades Terapêuticas (CTs).
Contudo, a análise desses achados e as conclusões do RINCTS_25 são substancialmente questionáveis, pois parecem desconsiderar propositalmente a distinção fundamental entre o modelo conceitual legítimo de Comunidade Terapêutica e a prática irresponsável e ilegal de instituições clandestinas ou não regulamentadas, ignorando a própria essência da história e das bases conceituais do modelo.
A Comunidade Terapêutica, em sua origem histórica e conceitual, surge no mesmo cenário da Reforma Psiquiátrica e do Movimento de Luta Antimanicomial, no contexto mundial da saúde mental na segunda metade do século passado. Longe de ser um retorno ao asilo, o modelo original de CT, conforme proposto por Maxwell Jones, baseia-se em um modelo psicossocial e democrático que visa a reinserção social, o respeito à dignidade humana e a participação ativa dos acolhidos no seu processo de recuperação, divergindo, na sua essência, da lógica de confinamento.
O RINCTS_25 se insere em uma série de relatórios, como o do CFP/MNPCT/PFDC/MPF (2017), que foram criticados por utilizar uma metodologia e uma amostragem não científicas para traçar um panorama que descredita o modelo de CT como um todo.
A Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT) e outros grupos organizados, por sua vez, têm insistentemente apontado a necessidade de distinguir as CTs regulamentadas que seguem rigorosamente os princípios éticos e a legislação, daquelas instituições irregulares, cujas práticas desumanas são, na verdade, denunciadas e combatidas pela própria FEBRACT.
Contestação metodológica: o enviesamento da amostra
O cerne da contestação ao RINCTS_25 reside em sua metodologia de inspeção e na validade de sua amostragem para a generalização dos resultados. Embora o RINCTS_25 afirme que seu estudo tem caráter exploratório e não estatístico, refletindo uma pequena parcela do universo, ele o faz para fundamentar conclusões que, no final, exigem uma reformulação profunda da política de atenção no país, o que exige um rigor científico que não foi demonstrado.
Relatórios anteriores, de natureza semelhante ao RINCTS_25, foram amplamente criticados por basearem suas conclusões em amostras estatisticamente insignificantes e tendenciosamente selecionadas.
Por exemplo, o Relatório de 2017 do CFP inspecionou apenas 28 locais, o que representaria aproximadamente 1,5% do total de CTs atuantes, sendo que 10 destes afirmaram receber internações voluntárias e 18 impõem internações involuntárias e compulsórias, o que, por princípio (ou ‘por si só’, ou ‘por valor prévio’) já os desqualificam como CTs.”
De forma análoga, o RINCTS_25 inspecionou 43 instituições, um número igualmente pequeno em relação ao universo de CTs que, em 2014, era de quase 1900, segundo a SENAD (2017).
A principal falha metodológica reside na ausência de critérios claros para a escolha dos locais inspecionados, levantando o questionamento de se a amostra foi intencionalmente composta por estabelecimentos que divergiam das características essenciais das verdadeiras CTs, ou locais que apresentaram algum tipo de denúncia prévia.
O RINCTS_25 relata, por exemplo, que 57,9% das CTs ultrapassam o limite de um ano de acolhimento, e que foram constatadas internações involuntárias, uso de contenção e restrições de comunicação. Tais práticas claramente descaracterizam fundamentalmente o serviço de CT, sendo mais típicas de clínicas involuntárias clandestinas.
Outro problema metodológico do RINCTS é que define a metodologia de inspeção, mas não especifica como, de fato, as irregularidades foram identificadas. Em vez disso, ele apresenta 48 relatos de irregularidades e violações, dos quais apenas cerca de um terço podem ser considerados evidência direta e inequívoca de práticas que violam a legislação vigente ou os direitos humanos fundamentais. O restante dos relatos é referente a descrições das rotinas dos locais por parte das equipes entrevistadas.
Este 1/3 de relatos individuais de abusos, violências e irregularidades, embora verídicos e totalmente repudiáveis, além de documentar práticas que descaracterizam claramente o modelo autêntico de CT, não são suficientes para validar a generalização das conclusões para todas as CTs do Brasil.
Por outro lado, uma pesquisa científica de fato, como a Nota Técnica: Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras, realizada pelo IPEA (2017) a pedido do SENAD, utilizou uma amostra estatisticamente representativa de 661 CTs e demonstrou que as CTs brasileiras se encontram em um processo de padronização e profissionalização, com sedes físicas bem equipadas, equipe multiprofissional e atenção às normativas, e em nenhum momento foi encontrado o conceito de violação de direitos ou internações involuntárias na seleção da amostra desta pesquisa.
O mais recente monitoramento do MDS/UFMG (Pesquisa dos dados do monitoramento das entidades de apoio e acolhimento atuantes em álcool e drogas, 2024) contesta a generalização das denúncias ao avaliar 518 CTs contratadas pelo Governo Federal, uma amostra significativamente maior que inspeções anteriores. Os resultados demonstram que a regulamentação e o monitoramento impulsionaram a qualidade e a profissionalização. Mais de 88% das entidades apresentaram infraestrutura adequada, 98% tinham responsável técnico de nível superior, e 60% são vinculadas a Federações como a FEBRACT. As notas médias dos acolhidos para qualidade e respeito aos direitos ficaram acima de 90%.
Embora persistam falhas, o estudo valida a existência de um modelo de CT legalmente constituído e bem avaliado pelos usuários, sugerindo que as denúncias de violações se concentram em instituições irregulares, e não no modelo fiscalizado.
O RINCTS_25, ao negligenciar esta distinção e generalizar as falhas de um subgrupo para todo o modelo de CT, demonstra um enviesamento que desconsidera os dados de pesquisa robusta e parece confirmar a teoria de que foi construído no intuito de de aviltar as Comunidades Terapêuticas do Brasil.
A divergência conceitual sobre as violações denunciadas
As violações de direitos humanos, que são a principal tônica do RINCTS_25, como a internação involuntária, o isolamento físico, o uso de contenção química e mecânica e as restrições à comunicação e à liberdade religiosa, são inaceitáveis e contrárias aos princípios éticos e legais do modelo autêntico de CT, e são igualmente denunciadas amplamente pela FEBRACT.
Contudo, o RINCTS_25 falha ao não atribuir essas práticas à natureza clandestina ou irregular das instituições que as cometem, vinculando-as, indevidamente, ao modelo CT.
A adesão e permanência em uma CT devem ser exclusivamente voluntárias. O RINCTS_25 apresenta relatos de acolhidos que foram trazidos “à força” e mantidos contra a vontade, o que configura uma prática que a própria FEBRACT classifica como incompatível com o modelo.
O problema, portanto, não é o modelo CT, mas a falta de fiscalização e a proliferação de locais que não são CTs, mas que atuam sob este nome para explorar a vulnerabilidade das famílias e dos dependentes químicos.
O RINCTS_25 enfatiza, também, a prática da “laborterapia” como uma “fraude à relação de trabalho” e uma substituição da contratação de profissionais por mão de obra barata. Embora o RINCTS_25 reconheça que o trabalho é, por vezes, imposto como obrigação, a visão de uma CT autêntica é que o trabalho, ou atividades de capacitação e formação, deve ser um instrumento ético e protegido de reinserção social e de desenvolvimento de habilidades, e não uma ferramenta de exploração.
A eficácia da CT legítima e o desfecho positivo
O RINCTS_25 critica a falta de evidências de efetividade e de metas para a política pública de CTs, concluindo que a lógica de confinamento persiste. Contudo, a Tese de Doutorado de Kurlander (2019), que estuda CTs que se alinham ao modelo FEBRACT, oferece evidências robustas de eficácia do modelo autêntico.
O estudo longitudinal confirma a eficácia do tratamento completo em CTs, demonstrando que a alta terapêutica (conclusão do programa) aumenta em 2,5 vezes a chance de indicadores de qualidade de vida elevados após 12 meses, o que se associa também à manutenção da abstinência pós tratamento.
Já o estudo de monitoramento de CTs paulistas (BARRETO et al., 2021; MADRUGA; BARRETO, 2021), com dados de 8.109 acolhidos de 48 CTs vinculadas ao Programa Recomeço do Governo do Estado de SP entre 2014 e 2016, comprova que Conformidade e Monitoramento são possíveis. As CTs avaliadas, em sua maioria ecumênicas, demonstram engajamento no modelo psicossocial, com mais de 90% dos usuários participando ativamente de atividades como apoio psicossocial e conscientização sobre a dependência química.
Neste estudo, 21,4% dos indivíduos retornaram ao convívio familiar com condições de auto sustento, um índice considerado acima das expectativas para esta população. Isso corrobora que, sob monitoramento, as CTs desenvolvem atividades que promovem a recuperação de vínculos (79,3%), o que é vital para o sucesso terapêutico.
Estudos como estes validam o modelo de CT como uma abordagem baseada em evidências e desmistifica a crítica de que a CT é intrinsecamente falha.
A imperiosa necessidade de regulamentação e fiscalização ética
A principal falha do sistema, conforme demonstrado em toda a literatura exposta, não reside no modelo conceitual da Comunidade Terapêutica, mas sim na falta de controle e regulamentação dos locais de internação para dependentes químicos no Brasil, o que tem contribuído para o descrédito do modelo.
A FEBRACT tem historicamente atuado na construção de marcos regulatórios, como a edição de seu Código de Ética, em 1995, que serviu de base para a elaboração da Resolução da Diretoria Colegiada ANVISA 01/2001 e a Resolução CONAD nº 1/2015, entre outros instrumentos criados para garantir que as CTs sejam avaliadas e fiscalizadas sistematicamente.
O RINCTS_25, ao invés de propor medidas de fiscalização que distingam e validem as CTs legítimas e punam as práticas abusivas, acaba por generalizar e descreditar a única modalidade de tratamento que, atualmente, absorve a maior parte da demanda por acolhimentos para dependentes químicos no Brasil. A única “solução” proposta é o fechamento das CTs, sem apresentar uma alternativa viável e eficiente.
Este tipo de solução trouxe no passado graves problemas, entre eles a proliferação das CTs clandestinas e a desassistência da população mais necessitada.
Como mostra Kurlander (2024), após o início do Movimento de Luta Antimanicomial no Brasil, na década de 1980, cerca de 70 mil leitos foram fechados em hospitais psiquiátricos que operavam em condições degradantes. Sem uma rede extra-hospitalar estruturada, muitos pacientes ficaram desassistidos e em situação de rua. Nesse contexto, instituições religiosas, sem critérios técnicos ou profissionais qualificados, passaram a acolher esse público, autodenominando-se equivocadamente como Comunidades Terapêuticas (CTs). Uma década depois, essas pseudo CTs passaram a oferecer aproximadamente os mesmos 70 mil leitos que haviam sido extintos nos hospitais, absorvendo a demanda de forma precária e misturando pessoas com transtornos mentais, dependência química e sem-teto.
Sem dúvidas, uma amostra clara de que a política de fechamento indiscriminado, vinculado à perseguição ideológica, não geraram, e não irão gerar, resultados positivos para a nossa sociedade.
Conclusões
Assim como aconteceu com todos os relatórios anteriores, as conclusões do RINCTS_25 não podem ser generalizadas para descrever toda a população de CTs brasileiras, pois a amostragem foi insuficiente para tal, assim como os critérios de seleção da amostra não foram isentos de viés acusatório.
A solução para as violações está na fiscalização rigorosa, na aplicação da lei contra instituições clandestinas, e no fortalecimento e financiamento das CTs autênticas e regulamentadas que demonstraram ser eficazes na promoção da qualidade de vida e na reinserção social dos dependentes químicos.
O debate de políticas públicas deve finalmente se afastar do embate ideológico e se concentrar em evidências científicas, reconhecendo a Comunidade Terapêutica, tecnicamente constituída e regulamentada, como um dispositivo legítimo, complementar e necessário na rede de atenção psicossocial.
Autoria: Dr. Pablo Kurlander
Revisão e Apoio: Diretoria FEBRACT
Referências
BARRETO, K. I. S. et al. Comunidade Terapêutica como parte da Rede de Atenção Psicossocial: Conformidade e Monitoramento são possíveis? Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, São Paulo, v.6, n.28. p.7-10, 2021.
BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – MPF. PROCURADORIA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO – PFDC; MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO – MPT. Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas. Brasília, DF: MPF; MPT, 2025. 173 p.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA – CFP; MECANISMO NACIONAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA – MNPCT; PROCURADORIA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO – PFDC; MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – MPF. Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas – 2017. Brasília, DF: CFP, 2018.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Nota Técnica: Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras.n. 21, mar. 2017.
KURLANDER, Pablo. Fatores associados à recidiva e abandono do tratamento de dependentes químicos: um estudo longitudinal em duas Comunidades Terapêuticas. 2019. 208f. Tese (Doutorado). Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Medicina, Campus de Botucatu (FMB-UNESP). Botucatu, SP.
KURLANDER, P. et al. Improving the Quality of Life During Recovery-Oriented
Treatment in Therapeutic Communities for Addiction in Brazil. In:
FLORENCE, M. et al. (eds.). Handbook of Addiction, Recovery and Quality of Life. International Handbooks of Quality-of-Life. Springer Nature: Switzerland, 2024.
https://doi.org/10.1007/978-3-031-65873-0_28
MADRUGA, C. S.; BARRETO, K. I. S. O sistema de monitoramento dos serviços de acolhimento social de longa permanência do Programa Recomeço. In: LARANJEIRA, R. et al. Baseado em Evidências: o recomeço longe das drogas. Editora Brilho Coletivo. 1 ed. p.83-118. São Paulo, 2021.
SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS (SENAD). Mapeamento das instituições governamentais e não-governamentais de atenção às questões relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas no Brasil – 2006/2007. Brasília, 2007.